sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O DEFUNTO E A VIRGEM


(Crônicas de Minas) - Devo tudo o que sou, e olhem que não sou pouca coisa, ao velho Sabinho, criador de jias, fabricante de gaiolas e mercador de passarinhos, no Brejo Escuro. Pai de Carola, viúvo da benzedeira Gertrude e jagunço enrustido. Sabinho é isso mesmo, sabidozinho. Criava jias, para não dar na vista de seu ofício sério. E muito estranho, não usava revólver, nem faca. Dava outros jeitos. Era criativo. “Tudo que a gente faz, deve ter gosto e arte”. E assim era. Inventou um jeito de cruzar jia-pimenta com jia-boluda, que pesava mais e tinha gosto de cascudo com frango. Suas gaiolas eram cada uma diferente da outra. Fazia gaiola que parecia castelo, tão cheia de torres e outras nove-horas; tinha gaiola com jeito de igreja e até uma – própria pra cardeal cantador – com jeito do Palácio do Catete.

“Cada sujeito deve morrer de um jeito diferente, dependendo da safadeza que fez, e olhe que eu só cuido de canalha. Gente boa, pra mim, é santo”. Armava alçapões para pegar passarinhos do mesmo jeito que montava suas arapucas pra caçar os grambaus. Não sei dizer de onde ele tirou essa palavra para as suas vítimas.

Pressenti, naquele domingo, depois da missa, que ele me colocara na sua lista de grambaus. Foi o jeito que ele me olhou.

Eu estava inocente: dera de bobo e desinteressado, quando Carola abriu o jogo. Estava, como se diz, “a fim”. Esqueci do caso da mulher de Putifar; se tivesse me lembrado, ficaria também “a fim”. Carola, não sendo casada com Putifar, e estando ofendida com minha covardia (foi por medo que não a levei ao rio), deve ter contado o caso para o pai. Pronto: passei à categoria de grambau.

Tratei logo de botar água no visgo de Sabinho. Aleguei negócio urgente na capital, e viajei pro Morro Triste. Arranjei um barraco, botei lá minhas coisas, e mandei um recadeiro positivo avisar a Carola que estava “a fim”. Ela chegou de tardezinha, meio ressabiada, sinal de que eu estava certo. Abri uma garrafa de vinho doce – ela adorava vinho doce – e taquei no copo três comprimidos daqueles dos bons. Ela dormiu, e eu fiquei de olho aceso e ouvido esperto. Foi então que ouvi o barulho do chocalho. Percebi logo: cascavel ensinada. Com jeitinho, e jeitinho eu tenho, agarrei a bicha pelo pescoço, e a enfiei no pote vazio e de boca larga, tampei bem, deixei passar um bom tempo, simulei certos ruídos de prazer. Depois, dei um urro de dor. Foi a tempo de Sabinho olhar pela fresta da janela e me ver arriado no chão. Chamou pela filha, e ela dormia feito pedra. Arrombou a porta – e foi a minha vez. Ficou de costas para ver a filha, e aproveitei. Sendo ele mais maneiro de corpo, puxei o bicho pelo pescoço, e enfiei sua cara na boca do pote, e sujiguei forte. Esperei até que não se mexesse mais e me mandei, deixando para trás o defunto e a virgem.

Com o que aprendi com Sabinho, usando em outros ofícios, cheguei aonde cheguei.

domingo, 5 de agosto de 2012

AS ARMAS



Senhor de todos os respeitos, não o amavam, mas temiam seu mistério. Ali chegara trinta anos passados, com grossos contos de réis, a mulher cabisbaixa e o fordinho que, ao entrar no povoado, exigira turma de enxadeiros para arrumar a légua-e-meia de caminho ruim.

Chegara com carta de recomendação ao major Cerqueira, filho do finado coronel do mesmo nome, e por isso portador de patente menor, já que a Guarda Nacional fora extinta, mas ainda prevaleciam as honras da família. O major Cerqueira vendeu-lhe, pelo dobro do que valia, uma data de terras de capoeira nanica e brejo duro. Isso não o esmorecera; com dinheiro tudo se ajeita, e dinheiro ele tinha.

Conversando pouco, contratava seus camaradas ao preço do mercado, mas oferecia compensações secretas: mais pêlo de carne no caldeirão, litro-e-meio de cachaça aos sábados e remédios para doencinha rasteira, como desarranjo e defluxo. No armário da varanda (camarada seu não entrava da varanda pra dentro) guardava sal-de-glauber, sena, maná, magnésia e elixir paregórico, que dosava criteriosamente.

Nos trinta anos engrossou fortuna, mas não pôde prosperar família. A mulher era de barriga miúda, comentava-se, de boca a ouvido, porque, fora das paredes, ninguém sabia do que se passava entre os dois. Nunca lhe haviam visto os dentes, e, de sua boca, à parte os cumprimentos secos, só se ouviam palavras de precisão. Aquelas que davam ordens, e aquelas que tratavam de negócios. Na cidade, mesmo, seus assuntos eram poucos: comerciava com gente de fora, que lhe vinha comprar garrotes e novilhas de raça, especialista que era em melhorar o sangue de nelores uberabenses. Dizia-se (ninguém provara) que seu segredo era o incesto entre os bichos.

Levantou-se naquela quinta-feira como de seu costume, às cinco, e foi chamar o vaqueiro, mas não o encontrou no curral. Não carecia de procurar a mulher, mortíssima havia meses já – mas foi até o quarto da cozinheira, que tampouco estava. “Ó gente, que passa aqui, que não tem ninguém?” – resmungou. Saiu um pouco. Da varanda via o povoado todo, com suas vinte e oito casas. Era verão alto, e o sol brilhava. Não viu vulto que fosse. Às seis chegariam seus camaradas, e o vaqueiro e a cozinheira (ele já desconfiava) deviam estar pelo retirinho, mais no seguro, acordando de safadezas. Esperaria.

As sete, pela primeira vez na vida, ele mesmo coou café forte, cortou uma fatia de queijo e resolveu chegar ao arraial. O arraial também estava vazio. Deu-lhe então o sério pressentimento de que o haviam achado. Voltou apressado para casa, o coração socando o peito, à espera de uma bala nas costas – mas, nada. Só havia o silêncio. Ao chegar ouviu mugidos horríveis no estábulo. Seu reprodutor de duzentos contos, estava peado e castrado. As outras reses agonizavam devagar, meio sangradas pelo pescoço. Eram eles. Entrou, e viu que não tinha uma só arma em casa. Mas não iria pedir misericórdia. Já sabia o que ocorrera: saídos da cadeia, os três se juntaram para vir atrás dele, que nunca cumprira nada do prometido – nem mesmo olhar pela mulher do Santos, que estava grávida, nem mesmo pagar a operação do pai de Durvalino. Tinham esvaziado o arraial, indo de casa em casa durante a noite – e como ninguém ali o estimava, fora fácil mandar todos para assistir, dos altos, ao seu fim. Queriam matá-lo de medo. Era o que ele faria se estivesse no lugar deles – e um deles estivesse em seu lugar. Mas estavam lidando com lacrau. De medo, não. De bala sim, ou , quem sabe, talvez. Foi para a varanda, sentou-se na cadeira alta, tirou a camisa e ofereceu o peito magro como alvo. Mas não houve tiro. Ouviu barulhos no fundo, não se moveu. Com fome, o sol a pino, levantou-se devagar, foi à cozinha, cortou um pedaço de charque, chamuscou-o no borralho, comeu. Tirou, com a cuia, água do pote e levou-a à boca: estava amarga, purgativa. Não bebeu. Ao meio dia os passarinhos sempre cantavam, e estavam mudos. Haviam posto arsênico no alpiste.

Voltou para o cadeirão da varanda e, pela primeira vez a paisagem ouvia sua gargalhada: “apareçam, se são homens. Venham, seus frouxos.” Calou-se, ao sentir a velha e companheira dor no peito. Mas não enfiou a mão no bolsinho da camisa para apanhar o comprimido. Levantou-se da cadeira, sentou-se na rede, gritou:

- Já que vocês não chegam, vou tirar uma soneca. Quem sabe arranjam coragem?

Respirou fundo, deu uma banana para a paisagem quieta, recostou-se, e agüentou, prazeroso, a dor da angina. Quando, finalmente, rastejaram até a varanda, ele ria de olhos fechados, e dois dedos, o polegar e o indicador, se juntavam, hirtos, no gesto obsceno.