quinta-feira, 19 de julho de 2012

O ILUMINADO


Quando lhe perguntei se era médium, respondeu-me que sim, mas de seu próprio espírito, e desenvolveu a teoria de que, se os espíritos dos mortos conhecem o destino alheio, os espíritos dos vivos também o conhecem. A diferença, me disse, sério, é que a carne atrapalha. Quando um espírito encarnado consegue vencer a barreira do corpo e valer-se dos neurônios apenas como instrumento e não como órgão pensante, disse, qualquer um é iluminado. Esse era o seu caso. Narrou o que eu sofreria na vida (e tem acertado), mas não me disse que teria alegrias. “A alegria deve ser sempre uma surpresa; do contrário, não tem graça”. Como eu estivesse entrando na puberdade, perguntei, sério, como seria a minha vida amorosa, e ele manteve a postura. Só me contou de amores perdidos, de amores frustrados, de desilusões. “A parte boa será surpresa, e os bons videntes não devem tratar de surpresas, entre elas a maior de todas, que é a da hora da morte”.

Vivia de seu ofício, sem constrangimento: “os médicos não cobram? Os sacerdotes não recebem espórtulas? O consolo é um serviço que prestamos, que toma o nosso tempo, e o tempo é inelástico, o tempo de vida é a única propriedade que temos, e toda propriedade deve render, não é mesmo?”

Achei curioso o seu raciocínio, embora o considerasse meio mercenário. Mas, o que cobrava era tão pouco, que me senti explorador de seus serviços.

Sua casa ficava em uma de minhas rotas habituais, que, naquela época, eu percorria de dois em dois meses. Vivia normalmente, com sua mulher, uma morena trintona (ele tinha mais de 50). As duas filhas adolescentes estudavam na cidade, estavam com a avó. Perto corria o Rio Paraopeba, ainda piscoso, e os pescadores, ao passar, sempre deixavam algum peixe, que ele aceitava moderadamente. Não queria peixe para apodrecer. Não pescava, nem trabalhava em coisa alguma. “Meu tempo é pouco para pensar, e sei quando alguém está chegando, e começo a ver sua vida, antes mesmo de ele sentar nessa cadeira aí”. A cadeira, forrada de taboca trançada, era vermelha, cor, que segundo ele, prende a alma ao corpo. É a cor do sangue, não é?”

Anotei muitas de suas observações sobre o mundo e a vida. Quando o vi pela última vez, estava muito doente, mas não sabia quando iria morrer, embora pressentisse que não demoraria muito. “É a grande surpresa”, me disse, sorrindo, sem falsa resignação. E me deu algumas de suas anotações sobre o jeito de viver em paz, em dois grossos cadernos. Disse-me que aquelas idéias não serviriam apenas para mim. Serviriam para todos os que as lessem, porque as almas são todas iguais, e o que muda é o lado de fora da vida, ou, seja, o mundo.

Surpresa, mesmo, eu tive quando passei pela última vez pela casa de sua viúva, a morena Durva. Ela resolvera viver de sua sensualidade e lascívia, recebendo os clientes que passavam pela estrada. Recusei seus serviços, com elegância, embora tenha sido difícil dispensar aquelas formas e o chamado dos olhos e dos lábios. Mas sempre fui cauteloso.

Um dos projetos que provavelmente nunca cumprirei é o de reescrever as recomendações de Geraldo Osório, porque, ainda que bom de idéias, ele não era forte em ortografia e em sintaxe. Afinal, não podemos exigir tudo dos espíritos, encapsulados neste nosso corpo imperfeito e perecível.