A ladeira é a mesma, e os musgos cinzentos do velho muro, que tanto encantavam Ana Rosa, fazem‑me parar nesta pedra, antes de continuar. Vejo a casa de meu tio. Ela envelheceu; as janelas, fechadas, são como olhos de desbotado azul.
Nestes quarenta anos muita coisa mudou: os turistas
sobem a ladeira, espantam as avencas que sobrevivem entre as pedras da beira.
Antes, quando, nas férias, voltávamos do campinho, onde buscávamos as gabirobas
que apertavam na língua, a ladeira era menor. Eu corria atrás de Ana Rosa. Suas
pernas eram rosadas e sardentas.
Como estará meu tio ? Naquele tempo ele iniciava a sua
amizade com os fantasmas. Vinham, em grupos diferentes, em noites sem lua,
jogar gamão e contar as safadezas dos tempos do Conde de Assumar.
Meu tio, às vezes, encontrava um e outro, quando
voltava do correio. Parava, costumava sentar‑se à beira das ruas, em qualquer
soleira de porta, e conversar longamente com os mortos; por isso o aposentaram ‑
e meu tio, com o ócio, dava mais de seu tempo a estes amigos, deixou os outros ‑
talvez os tempos que chegavam, com automóveis e o rádio, desencantassem‑no. Ele
preferia os mortos, também assustados, que temiam ser agarrados pela máquina
fotográfica dos poucos turistas de então e, assim, serem devolvidos à vida, à
monotonia das repartições públicas.
Estou
diante da porta. Um dia, nas férias de 36(ou 37) Ana Rosa me disse, à despedida:
- Quero ir com você. Para onde você for. Meu tio, os olhos azuis e quietos,
nada disse. Entre as férias, o tempo de escola parecia longo.
Às vezes,
alguém vinha de Ouro Preto, trazia‑me um envelope com passarinhos coloridos
desenhados (sempre os mesmos estranhos rouxinóis bicando um coração de vivo
vermelho). Dentro, a mensagem de Ana Rosa : fiapos de musgo verde, raminhos de
avenca.
Ana
Rosa crescia entre as romãs. Ao fazer quinze anos, ficamos noivos. Meu tio só
disse "hum... hum..." quando meu pai lhe falou de nosso desejo de
casar e explicou o pedido cedo:
‑ Posso morrer a qualquer hora. Queria ter a promessa
de que viverão juntos.
A porta está encostada, como sempre. A velha Lavínia
estará agora no fogão do quintal, fazendo o sabão da semana ou catando
gravetos. É cedo ainda, cheguei bem cedo. Macedo seguiu viagem para Mariana,
deixou‑me ao pé da ladeira : o volks não a escalaria.
Lavínia,
morta minha tia, abandonou o sonho de casar‑se: veio cuidar de Ana Rosa. Os
seios, virgens e vazios, não lhe serviam para alimentar a recém‑nascida. Mamãe
viu‑a certa manhã, com Ana Rosa no colo, feliz. A menina sugava o mamilo
infecundado. Lavínia tinha os olhos cerrados na substituída alegria.
Em agosto de 1942 ‑ que terrível agosto ! - tivemos as
férias da guerra. Com o povo revoltado pelo afundamento dos navios brasileiros,
fecharam‑se as escolas. Ana Rosa estava alegre, mostrou‑me as primeiras peças
do enxoval que bordava. Seus seios eram rijos e belos.
Entro na casa. Ouço, do quarto de meu tio, as vozes
sussuradas de seus convidados mortos. Na certa, a conversa demorou, não quiseram
voltar bem tarde para o cemitério, cochilaram nas cadeiras de palhinha ouvindo
meu tio mentir‑lhes. Velho vício este de meu tio: contentar a curiosidade dos
mortos com estórias que inventava sobre os vivos.
Alí está o quarto de Ana Rosa. Eu voltava, naquele
agosto, de Passagem de Mariana. Fora, com três outros, buscar tesouros. Na volta,
apanhei os galhos de quaresmeira florida para oferecer a Ana Rosa. Meu tio não
estava. Lavínia corria, ladeira abaixo aos gritos:
‑ Ana Rosa dormiu de repente ! dormiu de repente e não
quer acordar.
Encontrei‑a deitada sobre a cama. Desabotoei os
sapatos e levei a mão ao seu seio esquerdo. Era a primeira carícia, tantas
vezes sonhada. O coração já não batia, mas o resto do calor que animava a sua
pele fina ficou‑me na mão, até hoje, como pássaro obediente.
Junto, na mesinha, o bastidor, com a peça de linho que
Ana Rosa bordava. Apanhei a tesourinha e cortei‑lhe a madeixa de cabelos
dourados. Nas orelhas, Ana Rosa trazia os brincos de ouro de Sabará.
Escondi a madeixa na fenda, junto à janela. Nunca mais
voltei ao quarto.
Empurro, agora, docemente, a porta. O ranger é fino,
doem-me os nervos. O quarto está como estava: a cama, que Lavínia arrumou na
manhã do sepultamento, cobre‑se da poeira do tempo.
Voltávamos
do cemitério. Meu tio, depois de percorrer as tumbas amigas, gritou do portão:
‑ Mulher! Não deixe Ana Rosa sair no sereno ! Não deixe ela ficar resfriada !
Ana Rosa dormia com minha tia: a pétala, desfolhada,
voltava à dália morta.
Há um suave perfume neste quarto. As cortinas,
cerradas, estão corroídas pelas traças.
Levo a mão à fenda. Ali estão os cabelos de Ana Rosa.
Retiro‑os com cuidado, volto à sala antiga. Da janela, fechada, mas empenada, projeta‑se um sabre de luz.
Sopro o pó dos cabelos e vejo‑os na claridade. Estão encanecidos ‑ como os meus
próprios cabelos.
O rumor de meus passos assusta os mortos no quarto
imenso de meu tio. Ouço‑os, levantando‑se, e escuto a voz de meu tio, que os
tranquiliza:
‑ Não é
nada. Ana Rosa deve ter ido à janela. Vai sempre à janela, à espera do primo
que se foi e nunca mais voltou.
Um comentário:
Que texto belo. Uma poesia.
Postar um comentário